Canto para minha morte - Raul Seixas - Eu sei que determinada rua que eu já passei não tornará a ouvir o som dos meus passos.

Tem uma revista que eu guardo há muitos anos e que nunca mais eu vou abrir.

Cada vez que eu me despeço de uma pessoa pode ser que essa pessoa esteja-me vendo pela última vez.

A morte, surda, caminha ao meu lado e eu não sei em que esquina ela vai beijar-me. Com que rosto ela virá?

Será que ela vai deixar-me acabar o que eu tenho que fazer?

Ou será que ela vai pegar-me no meio do copo de uísque?

Na música que eu deixei para compor amanhã?

Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?

Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada, e que está em algum lugar me esperando embora eu ainda não a conheça?

Vou encontrá-la vestida de cetim, pois em qualquer lugar esperas só por mim e no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo, más tenho que encontrar, vem, mas demore a chegar. Eu te detesto e amo morte.

Qual será a forma da minha morte?

Uma das coisas que eu não escolhi na vida. Existem tantas... Um acidente de carro.

O coração que se recusa a bater no próximo minuto, a anestesia mal aplicada, a vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida, o câncer já espalhado e ainda escondido, ou até quem sabe, um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio...

Oh morte, tu que és tão forte, que matas o gato, o rato e o homem. Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres buscar-me...

(Raul Seixas)